Estudar processos museológicos expandiu a percepção de minha própria vida, e me fincou a sugestão de que talvez seja preciso o apego ao que posso tocar – sem pensamentos de quinta série, por favor. Quando você nasce no berço da prole e n’outro lado do muro (ou na área rural ou na periferia, seja lá como for), as coisas tomam rumos e significados mais profundos do que a casualidade. Aprendi, depois dos 30 anos, que as fotografias ovais dos avós na parede representam mais do que lembranças, são mensagens encapsuladas de privações. Decifra-me ou devoro-te diria a Esfinge de Tebas, mas é mais ou menos isso, a fotografia na parede é a representação de um percurso e o anúncio de muitas restrições, apesar do que foi captado na luz. Ninguém é o que se tem no retiro do diabo1, escreveu um poeta capivariano. E para onde se retira o diabo? Para a ausência do desejo. Guimarães Rosa, um dos maiores cancerianos dessa gleba, disse em entrevista que de repente o diabo me cavalga2. O diabo nada mais é do que o ímpeto, a criatividade, a mensagem, o fervor do vinho (ou a ardência do mercúrio no joelho ralado). Talvez fosse esse diabo da Xuxa na música quando tocada ao contrário, já que o disco de vinil tocado corretamente era pura agonia sonora.
Não faz duas décadas que os eventos do underground eram recheados de bandas com suas barraquinhas, produtos que desafiavam a criatividade podiam ser vistos estendidos em varais ou pranchas improvisadas, sem glamour ou parcimônia, apenas quinquilharias da cultura independente arrumadas com a vontade de quem muda o mundo, e uma trabalheira danada só para transmitir ao público a identidade ou mensagem que a banda queria passar além da música (costumeiramente a apresentação de uma banda no palco durava de 30 a 45 minutos, talvez se mantenha assim nos dias de hoje). Economia criativa? Bem, malemá se pagava um lanche com as vendas, mas a simples aproximação do público com os encartes dos cds feitos à mão, muitas vezes recortados e colados no pé do palco, criavam relações que se perpetuaram a perder de vista. O escambo - ¡Dame! ¡Dame! ¡Dame!3 - era muito forte entre os frequentadores dos rolês. Afinal, a Cena é uma hidra e as relações não eram determinadas por “ver uma banda” (ou ficar se fotografando feito um idiota), mas como um exercício de contemplação (essa palavrinha não serve só para o amigo budista que fica recitando o Daimoku, serve também para quem observa com atenção, pra quem está de passagem, mas não veio a passeio4).
Dos tantos rolês que organizei e participei, que fui e não fui, tenho histórias hilárias, de ver fantasma na cerração às 6h da matina (justamente quando eu estava sóbrio!) até a atuar de maneira improvisada em um longa-metragem (Fúria Alucinante é o nome do filme – um salve pra Porto Feliz/SP). Dos tantos rolês que fui com meu irmão, e para os quais ele foi, há de se considerar os vários “álbuns demo” que temos por aqui (ou até demo tape, ou produzidos na garra do Faça Você Mesmo praticamente tudo – desde a gravação até a impressão e venda).
E que falta me faz chegar em um show e ver, mesmo que tímida, uma mesa com as quinquilharias da banda. Sabe, eu vi Cólera com Redson… são tempos que ficam na memória, e naquela noite as mesinhas com as coisas de bandas estavam ali, mais presentes do que os presentes para ouvir. Não é um julgamento de mérito, se banda A é melhor do que banda B, é simplesmente porque o “produto” (odeio usar essa palavra) ofertado agrega história, conta sobre o esforço, mostra a atuação, fortalece a própria banda e o ambiente onde está acontecendo o rolê. Quantas e quantas vezes fiquei recortando capa da demo Remédio do Mundo para meu irmão (Banda H2Álcool), e ajudando a colocar etiqueta na cachaça (essa foi uma das ideias mais maravilhosas, e a cachaça era de alambique, nada de bebida com produtos tóxicos). Além dessa mobilização por parte dos familiares, amigos e conjugues que a atividade de produzir as quinquilharias da banda demandavam, havia também a divisão das responsabilidades, havia envolvimento e mobilização, o interesse pelas atividades manuais era aguçado e gerava certa comoção na comunidade.
Porém, como disse lá em cima, as privações são muitas e as dificuldades estão sempre coçando na garganta da música autoral, do underground *latidos ao fundo* que nunca vê a cor do dinheiro, só o esboço da esbórnia.
Tornou-se comum bar/boteco/botica com música ao vivo pagar 100 conto pra cada integrante da banda (isso quando paga dinheiro, não oferece um x-salada), e 100 conto não compra um par de baquetas ou um jogo de cordas de qualidade. E os outros custos, de logística e alimentação? Parece que o músico - artista em geral - sobrevive de fotossíntese ou sai da tumba somente para os dias de apresentação, sem tempo para retocar a maquilagem. As bandas ficaram à mercê do comércio abusivo e da exploração (sem contar que o discurso “estou abrindo as portas para a sua banda” nada mais é do que coação para que a banda se submeta a uma degradante troca de serviços: entrar com a massa e o dono do bar entrar com o pepperoni). Todo esse movimento, com o agravante de que a grande maioria dos bares não aceita música autoral, provocou racha em bandas, enfraqueceu a cena em cidades do interior - contando com a ajuda, é claro, das figurinhas carimbadas que estão sempre “organizando” os eventos, pequenos coronéis que detêm o grande poder: colocar a sua banda de música autoral para tocar num horário em que nem os fantasmas estão acordados. E aí vem o anúncio da desgraça, o serviço de streaming que enterrou de vez a produção das quinquilharias culturais (ou quase) e afastou as pessoas de sentir o esforço para estar ali - porque é muito fácil chegar em casa e despejar o celular nalgum canto… junto com as bandas. Pois como todos sabem, tem tudo na internet (espero que o leitor considere as finas camadas de mordacidade neste texto).
Onde diabos está essa música que eu não posso pegá-la? É assim como o ar que a gente pega e cuida, cuida, entretanto, não o estar pegando!?5 Ela me pertence, como um cd ou vinil ou k7 de antigamente, mas não ocupa espaço, não há materialidade? Onde exatamente posso reproduzir? Como vou compartilhar com alguém a sensação que vai além de ouvir, mas de pegar, de ver o encarte, de ler as letras, de admirar o trabalho artístico, de ter comprado numa determinada data ou feira cultural e ter, veja só, conhecido pessoas interessantes? A mídia física importa e vai além do que a indústria fonográfica oferece, ela principia da qualidade e de uma cadeia imensa de criações. Nada se iguala ao ruído de um vinil ou à potência de um amplificador valvulado - por mais que hoje existam recursos para emular efeitos parecidos. Compreendeu? Materialidade, vinil e válvula, fita, cd, coisa de pegar com a mão, sentir, sensação, ampliar a percepção através de recursos do próprio corpo além dos ouvidos. Música é um abraço que precisa de corpo. Sem contar que o artista pode autografar e dedicar no próprio objeto, mas como fica no celular? Não fica, né. É como eu vender um livro sem livro, no dia do lançamento recitar uma poesia e falar pra cada pessoa presente _ dedico a você! - e vazar embora. Aquilo existe? Em algum lugar da memória, mas de fato verídico? A experiência nasce da relação (e relação vem de “trazer de volta”).
A Cena está refém do celular com o serviço gringo que, convenhamos, é uma extensão do jabá das FMs, e muita gente resolveu se submeter não só ao dono do bar que não paga nem um x-salada, mas também a um serviço de streaming que não paga absolutamente nada por reprodução, que enfia a banda em algum algoritmo e seja o que Deus quiser (pelo menos estamos lá!… enforcados pelos pés). Como desgraça pouca é bobagem, nem analisamos ainda que a fragilidade da existência dessas bandas também passa pela falta do Jornalismo Cultural da Cena, porque muita gente confunde registro jornalístico com alimentar um perfil em rede social (tudo que o Instagram toca, apodrece) ou se fantasiar de pop star para angariar curtidas. O ego, sempre ele, a principiar derrocadas.
E onde entram os “processos museológicos” ou a “museologia” nisso tudo? Ninguém mais escreve nada, o registro escrito foi substituído por fotografias sem legenda, meros apontamentos equivocados, e a historicidade de grande parte da Cena foi esquecida ou está fragilizada na memória dos que participaram ou ainda participam, porém limitados com o volume de trabalho e das ocupações atuais. A partir do momento em que a diversidade se compacta num simples portfólio para resumir a amplitude da manifestação artística, a pasteurização se efetiva e tudo se desmancha no ar. Compreende? Tem que ter carinho pra lidar com a Memória. Os modelos estão aí para servirem ao interesse de quem não se importa. Você acha que o streaming se preocupa? Passe a pensar em quem você vê no seu show, ou em quem se ausenta. Caso houvesse interesse das grandes oportunidades (ficar famoso!), a voz ativa era de dentro para fora, com respeito ao pertencimento e ao grande gozo resultante do movimento legítimo que se expande, que visivelmente tem capilaridade e potencial, como um rizoma para impedir o apagamento da Cena. Mas vivemos no Capital, meus amigos… e ele não é uma epífita, é um parasita. O que a Cena pode fazer é usufruir do colecionismo das bandas e literalmente juntar tudo, e organizar de alguma maneira que faça sentido a quem vivencia. E a partir disso: organizar o passado é uma evolução musical6. Há conhecimentos que podem ser usados para gerenciar tudo isso, mas demanda uma coisa que não se quebra do dia pra noite… teimosia e ideia fixa.
O que quero dizer com tudo isso? Que por um momento, pela sagração da esperança, da continuidade, talvez, num lapso de sensatez, as bandas possam voltar a cultivar a produção independente, não só a música digital para ser esquecida no algoritmo de quem paga mais no serviço gringo. Cd, vinil, fita, zines, adesivos, vestuário, cama-mesa-banho também estão no corpo das bandas, fazem parte do organismo. E seria muito interessante que pedissem a ajuda para resgatar ou começar a registrar, mesmo que com textos simples, as andanças dos rolês. “Fulano tem muita coisa pra contar!”, e quem trabalha com museologia, ao ouvir isso, sabe que a vida brinca muito, e n’outro dia fulano já não está mais entra nós. O amanhã não existe ainda. Além de mobilização é preciso urgência, mas urgência com zelo e ponderação. Sou de uma geração que a gente gravava o som da rádio na fita-cassete pra ouvir depois com os amigos, e você sabe que tempo é esse? Meu tempo é quando7.
Este texto não é conclusivo, não é determinante, não é racional. É uma observação antes que o réquiem termine. E se fizermos alguma coisa, não na intenção do perpétuo, mas com a compreensão de que é preciso resgatar esse escambo, essa troca, essa vivência, essa produção independente e criativa, vamos ter alguém para velar nossos túmulos, alguém para olhar nossas coleções, alguém que possa encontrar os vestígios do que fomos e do que deixamos. Ovalados em uma moldura na parede, restritos ao que sobrou, privados de contar a própria história, a canção escapa da memória. As quinquilharias das bandas aguçam a curiosidade e fixam a atenção na saudade, mantenham-nas.
[esta publicação faz parte de uma série de solilóquios sobre a cena independente - underground]
BB, vulgo Eu mesmo.
João Guimarães Rosa entrevistado por Günter Lorenz. https://www.elfikurten.com.br/2011/01/dialogo-com-guimaraes-rosa-entrevista.html
Poema “Versos de Amor”, de Augusto dos Anjos.
Monólogo ao pé do ouvido - Chico Science e Nação Zumbi.
Poética I - Vinícius de Moraes.